Quem me obrigou a escrevê-la, sem saber, foi o meu avô Vitor – Vitinho para os netos – ontem ao almoço.
Tudo começou com uma bandeja de bolas de Berlim, daquelas douradas e bem recheadas com creme de ovos, borrifadas com açúcar por cima.
Ao meu querido avô, sempiterno jovem de 100 anos de idade, as forças já falham para algumas coisas. Mas não para segurar os talheres, isso nunca! Havia menos bolas do que pretendentes – éramos 12 abutres esfomeados à mesa – e ao sentir que era eminente o perigo de escassear, Vitinho apoderou-se da sua.
Ora, a partir desse momento, não havia mais ninguém na sala para além do Vitinho e a sua bola de Berlim.
O que se seguiu foi uma cena de amor em câmara lenta. Diria mesmo a roçar o erótico, com bolinha (de Berlim) encarnada no canto superior direito da TV, advirta-se já a ala mais conservadora da pastelaria.
O meu querido avô atacou a sua bola com a minúcia de um escultor de areia: primeiro pelos lados, não sem gentileza, cada garfada a desbravar a parte impostora da bola de Berlim, em que a massa é fofa porém desguarnecida, porque toda a gente sabe que nas primeiras dentadas não se apanha creme; e enquanto o creme não se mostrar nada lhe garante que não é um simples brioche.
Mas se soube ser paciente até aos 100 não era agora que Vitinho ia começar a ser precipitado. Foram várias garfadas preliminares até a bola redonda ficar quadrada e já não restar massa avulsa: a área com creme estava cercada, sem escapatória possível, e o prémio era todo seu para conquistar, uma dentada de cada vez.
Depois, todo ele era deleite. O prazer estampado na cara enquanto comia uma aresta do quadrado de cada vez, muito lentamente, e o doce de ovos sucumbia em golfadas cremosas para fora da massa; e ele saboreava cada bocadinho de olhos fechados, numa celebração grata e suficiente por si só. O relógio parou para o Vitinho mastigar, palavra que sim. Cada gesto determinado, sereno, numa voracidade comedida, porque não se quer terminar demasiado rápido.
Tudo era doce naquela imagem, sobretudo ele.
Aquilo não foi uma sobremesa, foi uma homenagem. Como só o meu avô sabe fazer. Ele não faz de propósito mas é mesmo assim: um ser de outra galáxia.
Portanto, eis a minha primeira resolução de Ano Novo: em 2014 quero comer uma bola de Berlim como se ela representasse toda a felicidade do mundo.
Do melhor! Vieram-me as lágrimas aos olhos pela ternura da tua mensagem! Parabéns Mariana!
Simplesmente Delocioso!!
Mariana, que maravilha ler estes posts!
É muito bom imaginar que se pode ser tão feliz comendo uma Bola de Berlim com creme, e consigo imaginar o seu avô deliciado. Que bom saber que ele está bem!
Caso ele ainda se lembre de nós, diga que a família Andrade e Sousa (os descendentes do Manuel) lhe mandam um grande beijinho.
Sou sua fã (quase todos os dias!) mas hoje foi de longe o que mais gostei(adorei!). E fiquei cheia de pena de não ter conhecido o seu Avô.