Jamais me atreveria a escrever sobre o amor. Deixo esse campeonato para outros, mais sábios e habilidosos. Hoje vou falar de uma corrente ideológica de origem mais humilde: a pieguice. A enjoativa, viciante, delicodoce pieguice.
A pieguice é o mais parecido que temos com um distúrbio de personalidade. Antes dela, juramos a pés juntos que jamais seríamos capazes, Deus nos livre, não somos esse tipo de pessoa. Mas a realidade, caros leitores, é que a pieguice não germina na pessoa avulsa. Ela só é fértil em casal. E funciona de forma cíclica: é profundamente irritante nos outros até nos tocar a nós.
O Bumba na Fofinha fez uma viagem aos meandros de pelúcia dos Ursinhos Carinhosos à procura de uma definição realista para a Pieguice e o resultado foi este.
A pieguice como ela é, em 12 torrões de açúcar:
1. Pieguice é falar à bébé. É encontrar cognomes delicodoces com base em sobremesas e animais felpudos, sempre no seu grau diminutivo
2. Pieguice é apontar um dedo crítico ao casal que anda com a mão no bolso das jeans um do outro, até se descobrir que é ESTUPIDAMENTE CONFORTÁVEL pousar a manápula no bolso da nalga do outro
3. Pieguice é seleccionar as compras no supermercado. Porque comprar coisas que o companheiro não gosta é incorrer numa espécie de delito, com direito a coima
4. Pieguice é competir pelo monopólio de quem tem mais saudades. “Não, eu é que tenho! Não, eu!” – o que dá azo às conversas mais imbecis de sempre, merecedoras de um rotativo nos dentes
5. Pieguice são aquelas conversas cheias de nada ao telefone. É picar o ponto antes de ir dormir mesmo que não haja rigorosamente nada para dizer. É ficar especado a dizer “Pois…”, porque nada aconteceu desde o último telefonema há 45 minutos atrás
6. Pieguice é passar o dia em modo Get a Room. É ter mãos ninjas com vontade própria a deslizar perigosamente perto das partes pudendas. São melaços e amassos em público, e idosas transeuntes a revirar a córnea de indignação
7. Pieguice é proclamar que músicas normais são a banda sonora do casal. É a apropriação legítima de clássicos universais, que perdem a sua condição de música autónoma para serem “a nossa música” (os Coldplay só podem ter pensado em nós quando escreveram isto). É configurar estas músicas babosas em toques de telemóvel
8. Pieguice é ter o direito de medicar o outro a seu bel-prazer, porque nós é que sabemos mais e melhor. Em casos graves, é querer assegurar as necessidades biológicas pelos dois – “Tens frio? E fome? Devias dormir um bocadinho” – como se o companheiro se tivesse esquecido de como sobreviver no planeta Terra sem a nossa ajuda
9. Pieguice é ser ciumento para lá de qualquer racionalidade. Não é que sintamos a Gisele Bundchen como uma ameaça real
10. Pieguice é achar que a nossa conchinha é melhor que a dos outros casais
11. Pieguice é falar em multi-plataforma simultaneamente – Ao telefone, pelo Whatsapp, Gmail, Facebook – uma só não chega para te dizer o quanto isto, aquilo e aqueloutro
12. Pieguice é a irritante partilha de tudo na alimentação. Comida ou bebida, sobremesa ou canapé. É desafiar as leias da física e dividir coisas indivisíveis. Uma vez vi um casal amigo dividir um ursinho-goma. Pernas para um lado, cabeça para o outro, e uma força bruta nos dentes para romper com a gelatina em dois. É absurdo? Sim. É querido? Também.
Quando o namoro acaba, a pieguice morre com ele. O casal deixa de se falar até que dias, meses ou anos depois se relêm as mensagens de antigamente e é como se nem reconhecêssemos a pessoa que escreveu aquilo. “Eu era assim?!” – e de repente é como se tivéssemos desmamado de um psicotrópico forte, ou recuperado de uma bebedeira grave.
Mas pensamos duas vezes antes de amaldiçoar aquele casal dengoso que canta em karaokes. Porque sabemos que eles nunca pensaram fazer nada parecido antes de se conhecerem.
Delicioso.
Delicioso, sim, e a mim, velhadas, evoca-me uma piadola do saudoso (só este termo…) Raul Solnado acerca precisamente duma pieguice de namorados – o corpo do delito era um “sinalzinho de beleza” que ela apresentava algures na fachada, que induzia a mais espectacular sucessão de lamechices da parte do namorado, mas que pós-matrimónio resultou no comentário repulsivo dela “afasta para lá essa verruga, credo!”…
Meninos, atenção, não é para rir a bandeiras despregadas, mas ocorreu-se-me, o que é que hei-de fazer…
E, vamos e venhamos, há-de ter mesmo o seu quê de aconchegante sermos objecto de pieguice…
“Pieguice é apontar um dedo crítico ao casal que anda com a mão no bolso das jeans um do outro, até se descobrir que é ESTUPIDAMENTE CONFORTÁVEL pousar a manápula no bolso da nalga do outro”
Não é… nunca foi… nunca será… está ao nível de unhas de gel e de carros tunning.
Nem tudo o que é confortável é “gratuito” usar-se… olha as Crocs…
Já me ri. Muito.
(E auto-identifiquei-me como piegas, sim. [Quê?… Oito em doze?…])
8 em 12 não está nada mau, querida Sofia. Saudades deste lado, espero que te esteja a correr tudo “de maravilha”, como dizem os espanhóis.