Estive a pensar e acho que vou começar a ser idosa antes de tempo.
Raciocínio:
Ser jovem neste país significa ter 50 anos de trabalho pela frente até à reforma. E durante esse meio século no activo o mais provável é vivermos fenómenos matemáticos tão inéditos quanto a relação incestuosa da hipotenusa com os catetos: os impostos deverão sofrer o milagre da multiplicação enquanto o salário médio evolui em contramão, no sentido do expoente máximo da sua pequenez e/ou extinção.
Tudo isto em estreita relação com o aumento do carteirismo político e a aceitação do furto não como prática comum, mas obrigatória. Na realidade acho que faz todo o sentido, uma vez que daqui a 50 anos a pensão dos idosos será tão miserável que mais vale minimizar o choque e ir reduzindo o vencimento aos poucochinhos.
Mal por mal, eu vou mais longe: quero evitar esse sofrimento e emigrar directamente para a velhice, sem fazer escalas na idade adulta.
Estive a estudar os velhotes à minha volta, e não deve ser assim tão difícil:
1) Há que ter uma caixinha compartimentada para os comprimidos – “tensão”, “prisão de ventre”, “cataratas”, “cástrol” – diferenciando as tomas de dia e noite, quando as cataratas permitem avaliar a luz lá fora. Guarda-se na mesma as embalagens de cartão dos remédios, todas escrevinhadas com indicações do doutor. Desobedece-se terminantemente às ordens do doutor. Cada dia escolhe-se um comprimido ao calhas e não se toma, vai-se variando na cor. Justifica-se: “Já tomo tantos, filho/a.”
2) Há que ter problemas de cástrol mas cozinhar refeições com níveis de gordura passíveis de entupir a aorta de qualquer atleta
3) Há que estar sempre “muito mal”. “Cada vez pior”. Pior que ontem, mas melhor que amanhã. Muito, muito mal.
4) Há que gritar quando se fala. Gritar muito alto por forma a que gritem connosco de volta. Não por surdez, mas pelo prazer de ver os outros vociferar para o ar. No autocarro, por exemplo, há que conversar aos berros com a idosa sentada no banco atrás do nosso, sem nunca girar a cabeça.
5) Há que ter dores nas “cruzes”. Há que não saber onde são realmente as cruzes, mas garantir que doem.
6) Há que competir com outros idosos na luta pelo recorde de Guiness ao nível da carga horária passada em Centros de Saúde sem qualquer maleita ou queixume verosímil.
7) Há que acumular pelo menos meia-dúzia de graus de parentesco: mãe, avó, tia-avó, cunhada, nora, madrasta, amante…
8) Há que não saber distinguir os personagens da novela e os actores na vida real.
9) Há que começar, articular e terminar frases por forma a fazer depender as actividades do dia-a-dia única e exclusivamente da vontade de Deus – Se Deus Nosso Senhor quiser (eu engomo a blusa), Que Deus Nosso Senhor me ajude (a engomá-la), Deus queira (que fique bem engomada), (Os vincos saíram,) Graças a Deus. No limite da excelência, há que possuir nome relacionado com Ele – Maria de Jesús, Nazaré ou Bendita eram trendy há 90 anos atrás
10) Há que sofrer com o complexo “No meu tempo não havia_______” e enfrentar uma luta diária com a tecnologia. Na raridade de existir um telemóvel, há que agarrá-lo com uma mão, afastar o aparelho da vista para ler ao longe, e digitar com o indicador da outra mão a uma velocidade imperceptível a olho nu, de tão lenta. Há que aumentar o volume da voz na proporção directa à distância geográfica a que se encontra o receptor, o que supõe posterior rouquidão em chamadas internacionais. Há que ir ao Centro de Saúde ver o problema da rouquidão com o doutor
Portanto, ser velhinho antes de tempo só tem vantagens: as pessoas voltam a tratar-nos como crianças, tem-se lugares especiais no autocarro, descontos no Jardim Zoológico e pode-se usar coisas postiças sem explicar porquê. Já para não lembrar que quando se é velhinho é permitido dizer as barbaridades necessárias, sem qualquer tipo de filtro, e uma vez instalado o caos, alegar insanidade.
Querem melhor?
Confirmo a presença de uns quantos vislumbres Niníticos neste post!
a fotografia da bigodeta idosa é mesmo real?? sem photoshop? quando for idosa não quero ser assim, help…!!!
Gosto da ideia de instalar o caos!!!!!!!!!!! E vou começar já, antes de ser idosa…
Há que tratar todos por “filho”
Ai filha é verdade, nem me lembrei, deve ser do-rremédios. (esta é outra, a de omitir o S quando o substantivo que se segue começa por R, como em “dores no-rrins”